1993

Um garoto em uma rua. É assim que começa essa história. Histórias infantis começam com "era uma vez", ao passo que grandes épicos começam com "em tempos distantes" ou algo que o valha. Entretanto, essa história é simples, ao menos em seu princípio. É sobre o jovem Samuel. A bem da verdade, de forma particular, ele mesmo não a consideraria assim tão simples, afinal, está apaixonado. Apaixonado de uma forma especial, como somente um garoto de 10 anos poderia estar. Ele está feliz e com medo ao mesmo tempo.

Hoje ela olhou para ele no corredor da escola e havia algo diferente. Algo no rosto - talvez um rubor - sugerindo que ela estava envergonhada. Sorrindo, porém, ao ser pega enquanto o observava. Isso é bom, segundo sua lógica pueril. Se ela ficou com vergonha, era porque estava, com certeza, pensando em algo, certo? Algo que não se costuma pensar a respeito de alguém, porque, se fosse algo comum, ela não teria ficado com vergonha, certo? Pois então! Isso é claramente um sinal de que ela gosta dele! Nesses tempos, Samuel era um jovem bastante objetivo. Isso, contudo, aliado à sua inexperiência e, obviamente, aos seus desejos, o fazia bastante passional em seus julgamentos. Como qualquer garoto de 10 anos. E outros ainda mais velhos.

Nesse dia, ele sequer pôde ter confirmação sobre seus devaneios. Jamais soube que a tal menina estava apenas resfriada e o rubor na verdade era um pequeno avermelhamento de seu nariz. O sorriso que lançou não foi para ele, mas para uma outra garota, que estava ao seu lado. Essa garota jamais viu Samuel. Não como ele gostaria que ela o visse. Não como ele tem certeza de que o viu. E, apesar disso tudo, a verdade não importa. Ele está apaixonado e, para todos os efeitos, ela também. O que farão? Sair sozinhos, com certeza. Se os pais dela deixarem, claro. Mas ele dará um jeito. Vai buscá-la em casa escondido. Vai salva-la de uma vida chata e tornar-se seu herói. Gostaria de ser como um herói mesmo, pra garantir que nada acontecesse a eles. Seria indestrutível! Não!! Seria forte!!! Poderia assim resolver todos os problemas dela e ela seria completamente grata a ele. Faria tudo que ele quisesse, mas não por medo. Faria porque gostava dele. E eles iriam transar! Sim, transar muito, porque ela parecia ser uma menina quieta, mas seus amigos dizem que as quietas são sempre surpreendentes (em um exercício de paradoxo que somente as crianças, cheias de certezas, poderiam orquestrar). Só que ele não permitirá que ela seja "surpreendente" demais. Teria que ser uma mulher direita, afinal, ficariam juntos para sempre.

Por meia-hora, Samuel desenvolveu toda sua teoria lógica a respeito do gostar e de como seria sua vida com essa garota que, agora se dava conta, sequer sabia o nome. Por meia-hora ficou ausente desse mundo, o que certamente explica sua apatia com a grande movimentação do outro lado da rua. Há 14 anos a cidade não era como hoje, certamente. Coisas que, hoje, são encaradas com certa apatia ou comoção breve, naquele tempo eram motivo de revolta popular. Portanto, houve muito tumulto quando dois homens em uma moto passaram atirando em alguns policiais que estavam em um bar. Talvez estivessem apenas descansando. Talvez estivessem extorquindo o dono do bar. Seja lá o que for, não importa a razão pela qual estavam lá. Nesse momento razão alguma importava. Uma bala na cabeça é sempre uma bala na cabeça, seja lá qual for o motivo

Samuel não viu quando os homens passaram perto do Bar nem quando sacaram suas armas. Não viu quando os policiais revidaram os disparos atingindo outras duas pessoas além dele. Não viu pois estava aéreo, ensaiando sua vida com sua nova namorada. Samuel não viu o descaso com que seu corpo fora tratado, estirado no chão com um ferimento em sua cabeça, nem os incontáveis minutos até que alguém lhe prestasse socorro. Talvez 1993 não fosse tão diferente de 2007 afinal.

Mas havia algo diferente. Os seus pensamentos, agora focados, deixaram a tal menina de lado e voltaram-se para sua situação. Não estava mais nas ruas de Redenção, sua cidade. Não estava em qualquer lugar que conhecesse. Estava tudo escuro. Por alguma razão, Samuel acha que deveria estar com frio também, pois não estava vestido e não havia luz alguma para aquecê-lo. Apesar disso tudo, podia ver seu corpo. Havia também um grande espelho, com moldura de prata, decorado. De alguma forma estranha, apesar de não haver luz, podia ver-se no espelho. Embora ainda relutasse a se reconhecer. Sua fisionomia era atrevida e debochada. Os olhos agudos e firmes, como os de quem sabe algum segredo que vale o beijo da moça mais bonita. Samuel estava submerso em um mar de escuridão, sem pisos, paredes, luz, roupas. Nada. Estava sozinho consigo mesmo, ou com uma versão estranha de si e isso era absolutamente desconfortável. Quem gosta de fitar o demônio que se reflete quando nos olhamos em um espelho escuro, afinal?