Carta para você

Eu não sei bem porque resolvi passar minha última hora de vida escrevendo isso. Bom, na verdade eu sei. A vantagem de lhe escrever uma carta que você jamais vai receber é que ela me permite um nível de franqueza que nunca pudemos ter um com o outro. É, certo, você não tinha muito problema com isso quando dizia que eu era egoísta.

Agora, parando para pensar, é até engraçado constatar que o mundo está literalmente acabando lá fora, enquanto aqui dentro do quarto é como se tudo estivesse a mesma coisa. Vai ver o mundo sempre esteve acabando e nós é que não percebíamos isso. Ou vai ver que o fim do mundo não é lá grande coisa assim. Mas, de verdade, eu não ligo muito para esse mundo mesmo. Não agora. Para não dizer que fugi da proposta de franqueza, essa história serviu pra uma coisa importante: pensar de novo em você. Tenho que admitir, eu estou realmente confuso quanto a isso. Essa coisa de repensar minhas atitudes não é algo que eu costume fazer. Sempre me achei um cara muito seguro. Obviamente você via isso como ignorância e, obviamente, não fazia questão de esconder sua opinião. Seja qual for o nome disso, sinto que estou diferente agora. Com toda essa cena desenhada, gostaria de dizer que é por pensar em você, mas, FRANCAMENTE, eu não tenho certeza. Talvez seja só o mundo acabando mesmo. Quem se importa?

Eu acho que queria dizer algo com isso, com essa carta. Coisas boas ou ruins, não importa. Coisas significativas apenas. Mas eu simplesmente não consigo. Só me ocorrem trivialidades quando penso na gente. Mas então, porque diabos eu só consigo pensar na gente?

Parei para pensar um pouco e me ocorreu um clichê desastroso. “As pequenas coisas são as que realmente importam na vida”. Sei, é horrível. O fim do mundo a menos de trinta minutos e nada épico me vem à mente. Queria, ao menos, morrer como alguém que disse algo realmente relevante. Mesmo que ninguém soubesse. Como você disse da última vez que nos vimos: além de egoísta, sou um idiota vaidoso. Que seja. Mas, sobre as pequenas coisas, talvez sejam mesmo importantes pelo aspecto quantitativo. Sabe, você pode ter uma ou duas aventuras marcantes, mas, no fim, quem te define mesmo é o cotidiano. E ele é feito de pequenas coisas. Pensando na gente, sem aventuras nem experiências radicais, só consigo me lembrar de algo como um período, um tempo. Um tempo bom que terminou seja lá por quê. Mas isso também não importa. Faltam 15 minutos e agora eu vejo como é difícil esse negócio de escrever sem roteiro. Quase uma hora e só me ocorrem poucas palavras triviais. Ao menos conclui que a trivialidade tem seu valor.

O que você pensaria disso tudo? Estou me perguntando isso agora e percebo que nunca te perguntei isso antes. Provavelmente você tinha razão em dizer que eu era um idiota. Provavelmente ainda sou. Entretanto não vou me desculpar. Não agora, quando estou tão perto de dizer uma coisa que nunca te disse, por ser... bom, um idiota.

Dez minutos depois do parágrafo anterior e estou aqui tomando coragem para te dizer isso. Mesmo sabendo que você não vai ler. Mesmo sabendo que isso é apenas um... eu não sei o que isso é. O tempo está acabando e as pessoas já fazem contagem regressiva na rua. Seja lá o que nos espera, queria dizer, ao menos dessa vez, que foi bom conversar contigo. Foi bom estar com você. Eu te a

Outro do lado contrário

Ficou parado diante do espelho. Navalha na mão, creme de barbear sobre a pia. A água corria pela torneira, monótona e hipnotizante.
Ergueu o braço, com o rosto já lavado. Pôs a lâmina na garganta. Parou e observou que no espelho, ao contrário dele, seu Outro era canhoto. Sorriu e parou o movimento de corte antes que ele começasse. Seu Outro o seguiu.
O que havia de errado, então? Poderiam mesmo as coisas do lado de cá serem tão inversas assim? A dor pode ser o seu oposto e tornar-se prazer? Sofrimento dilacerante pode ser satisfação calada? O espelho é uma porta para o mundo do inverso e, talvez, lá as coisas sejam melhores. Pode o choro ser riso, do outro lado do espelho?
Foi quando fez um pequeno corte sob o olho direito, e uma lágrima de sangue desceu pelo rosto. Embora sentisse dor, teve a impressão de que seu Outro estava sorrindo com o canto esquerdo da boca.