O homem que era amado pela Morte

"Um deus que não cuida dos seus, não merece adoração".

Essas foram as últimas palavras dele antes de seus pés dançarem sob o cadafalso. Como muitos dos homens que foram enforcados naqueles tempos, ele foi considerado herege, um inimigo de Deus e, portanto, inimigos dos homens de bem. Claro que naqueles tempos, assim como hoje, os homens de bem eram aqueles capazes que comprar sua entrada no Paraíso, o que excluía a maioria das pessoas e a estas só restava a resignação, a covardia e o medo. Era a favor desses que ele lutava. Mas ele diferia dos demais em um aspecto. Não tinha medo nem fé. Ao longo da história, muitos homens se mostraram audazes, mas no fim das contas, todos estavam sustentados pela convicção de que haveria alguma recompensa pela sua retidão e coragem. Assim morrem os mártires. Eles tinham um lugar melhor para ir do que a terra de seus executores. Da mesma forma, havia os homens que não acreditavam em nada além do ouro e a esses, foram reservados lugares especiais nas fileiras de qualquer um que pudesse pagar seu preço. Mas não com ele. Não era um mercenário, era um nobre. Herdeiro de uma família abandonada por seus súditos, cujo direito sobre as terras fora usurpado pelos inimigos que naquela noite bebem à sua derrota e festejam sua morte. Mas apesar de a morte não ser o fim, para ele, não havia Céu ou Inferno esperando para dar-lhe desfecho. Seu destino estava em suspenso, longe do alcance de suas mãos. Apesar disso, embora estivesse impotente, ele não tinha medo. Estava em uma escuridão infindável, sozinho.

Por quanto tempo esteve só, não é possível saber. Talvez uma eternidade inteira tenha se passado, mas como medir o tempo sem pares ou mundo? Esteve assim até que foi visitado por uma criança com olhar auspicioso. Ela lhe estendeu ambas as mãos. "Você não pode ficar aqui, sozinho, no escuro", ela disse, "venha comigo e essa solidão terminará". "Não temo a solidão", ele disse. Outra eternidade se passou e um homem, com roupas finas e postura altiva surgiu de lugar algum e lhe estendeu a mão. "Não tema", ele disse, "tudo está acabado agora. Vou levar-lhe para onde lhe é devido". "Não. Pertenço ao lugar que escolho, e nenhum outro. Não preciso de guia". Então, quando mais uma eternidade havia se passado, um velho com sorriso malicioso e andar cansado, aproximou-se e disse: "Venha comigo, para fora dessa escuridão. Vou levá-lo a outro lugar, onde poderá fazer algo que não ficar aqui". Ele então lhe disse. "Não importa quantas vezes tente me levar. Não irei para onde não acredito ser o meu lugar. E da mesma forma que não pertenço às punições dos pecadores, pois meu único pecado foi ser justo, não desejo sentar-me ao lado de quem não respeito. Mais uma vez você vem, e mais uma vez eu lhe digo não".

Após outro tempo indeterminado uma mulher aproximou-se dele. Mas ela não disse nada. Dessa vez apenas sentou-se ao seu lado...

O Homem então acordou ainda pendurado, agora sem platéia uivando pela sua dor. Apenas o ronco bêbado de um mendigo lhe deu consciência de que estava ainda no local de sua execução, ainda pendurado pela corda. Compreendeu então que estava vivo, e lembrou-se do que a mulher lhe dissera. "Não entendo porque resiste a mim, porque não cede aos meus chamados. Talvez seja por convicção, mas mesmo os mais convictos jamais recusam a mim. Talvez seja por não temer ficar aqui para sempre, ou temer a mim. Seja como for, estou cativada por você e me encontro diante de uma difícil decisão. Se levá-lo para o que há para além da escuridão, jamais voltarei a vê-lo e isso eu não suportaria. Vou, então, conceder-lhe novamente sua vida. Assim poderá morrer novamente e então nos encontraremos outra vez". Não era um sujeito idiota e sabia exatamente o que aquilo significava.

Os anos se passaram e como da primeira vez, os homens semearam a guerra e regaram como sangue daqueles que os seguiam. Mais uma vez ele mostrou-se contra e tentou fazer algo além de proclamar seus pensamentos. Pegou em armas e buscou resistir à pressão dos poderosos. Entretanto, como acontece aos mais fracos, foi derrotado e morto pelos adversários. Mais uma vez a mulher sentou-se ao seu lado, pegou-lhe mão e sorriu. Mais uma vez voltara a viver. Isso se repetiu algumas vezes, por séculos. Quando um grande evento surge e anuncia que muitos morrerão por poucos, ele ergue-se para fazer resistência.

Hoje um novo tempo se aproxima. A humanidade mais uma vez tem um grande poder em suas mãos e pouco controle sobre ele. Esse poder será objeto da cobiça de alguns homens e eles vão usá-lo para seus fins. Mais uma vez, inocentes e ignorantes morrerão. Mais uma vez ele levantará sua voz contra o poder vigente e buscará mudanças. Dessa vez será diferente. Não lutará sozinho e buscará o apoio de outros como ele. Talvez dessa vez ele vença. Mas, se não, ao menos vai vê-la novamente.