Contagem Regressiva

"As pessoas, cada um delas, estão separadas por rios. Esses rios são formados pelos medos e egoísmos das pessoas que cercam, portanto, como você pode imaginar, são rios bastante grandes. Grandes o suficiente para separar as pessoas de tal forma que uma não consegue ouvir a outra. Mas o mais interessante disso tudo, rapaz, é que elas acham que se entendem."

- Conversar? Perda de tempo, Sônia. As pessoas são incapazes de dizer o que realmente querem e, ao mesmo tempo, são igualmente incapazes de ouvir outra coisa se não aquilo que desejam.

- Do que está falando, Samuel! Você não está bem, cara. Não está sendo fácil pra mim também, mas a gente – você! – vai ter que superar isso! Eles morreram, e por mais que a gente saiba que não há culpados nisso, vamos ter que parar com essa palhaçada de auto-piedade e seguir em frente.

Silêncio. Ele não disse mais nada. Dentro da nova perspectiva de Samuel, não havia razão alguma para se afetar com as palavras de Sônia. Perda de tempo, como disse a ela. Apesar disso, era possível jurar que ele estava prestes a sorrir com desdém. Talvez tenha sorrido, de forma subliminar.

Se a vida tivesse senso de humor, com certeza não seria dos melhores. Veja bem: se tivesse. Acontece que não tem. As pessoas têm essa mania de atribuir humanidade a tudo. O homem criou um deus para cada coisa que existe, tamanho o seu medo de estar sozinho. Ao longo das eras, foram criados e descriados deuses da chuva, do vento, da terra, das goiabas, da vida, da morte, cada qual com sua função que, em geral, era imitar o homem. Não deixa de ser engraçado, porém, Samuel desejar exatamente o oposto disso tudo. Ele queria ficar sozinho. E não era uma vontade boba, para fazer cenas de sofrimento ou simplesmente para ter um tempo de reflexão. Ele queria de fato ficar sozinho. Não sentia verdadeira e absolutamente nenhuma – e eu friso NENHUMA- vontade de estar com alguém. Onde entra o senso de humor da vida? É como se ela gostasse de colocar o homem à prova, porque, independentemente da vontade de Samuel ser real ou não, era justamente isso que aconteceria caso as coisas continuassem nesse rumo. Não apenas pela sua atual postura, o que indubitavelmente redundaria no afastamento de qualquer ser mais inteligente do que um primata superior, mas também pelos cálculos dos últimos tempos, com amostragem verossímil e documentada pelas certidões de óbito de seus pais.

Durante os 10 anos que esteve em coma, sua mãe acompanhou cada dia de seu estado imutável. A pobre mulher o visitava todos os dias e rezava, vejam vocês, pela sua melhora. Entre uma infinidade de lágrimas, ameaças e pedidos de perdão por erros que ela sequer cometeu, a pobre mulher não resistiu por muito tempo. Seu corpo dava sinais de definhamento por conta do quadro depressivo, talvez de tom quase melancólico, mas provavelmente suportaria mais algum tempo. Acontece que foi justamente o efeito psicológico desse martírio que lhe trouxe o fim. De um jeito bastante teatral, é verdade. Mas ninguém pode dizer que ela não estava de fato sofrendo. Suas últimas palavras foram delírios (abafados pela porta do quarto premeditadamente trancada) enquanto ela sangrava seus pulsos ao lado do corpo comatoso do filho. Infelizmente Sônia chegara tarde para a visita e só pôde ouvir o fim de um fantástico discurso de fé e chantagem da pobre senhora convocando, com ternura, o filho para salvar-lhe a vida. Chegou até a proferir umas palavras mais esperançosas para Sônia, dizendo que ele voltaria por ela. Ele, é claro, não acordou. É preciso mais do que gritos desesperados e chantagem materna para se despertar de um coma. É preciso vontade. Muita vontade

Isso foi há cerca de 5 anos. A pobre senhora deixou pra trás um filho comatoso, uma filha a beira do desespero (com alguma razão, devemos admitir) e um pai, que, de ausente, passou a ser nulo. Sônia era a filha mais velha. Quando perdeu a mãe, contava penas com 19 anos mal gastos para suportar o fardo de levar o que sobrou da família adiante. Assim foi até seus 24 anos, com muita dificuldade e um bocado de indiferença, até que seu pai lhe fez o favor de morrer também. Nunca havia sido um grande homem. Nada de inspirador, mas, apesar disso, também não era uma pessoa ruim. No caso, começou a ser quando deixou de trabalhar e continuou a comer. Tornou-se um fardo que sequer se importava com o desmoronamento de sua família, afundado em auto-piedade e cachaça. Sequer cometia algum ato absurdo quando bebia. Isso, ao menos, daria a Sônia algo para culpar pela sua desgraça. Portanto, vamos deixar como está: ele fez um bem a todos quando resolveu morrer de algo que ninguém se importou muito em saber. Parece que foi dormindo, ou engasgado...

O fato é que o número de pessoas à volta de Samuel estava diminuindo e a tendência, considerando a forma que se portava com Sônia, era continuar assim.