Outro do lado contrário

Ficou parado diante do espelho. Navalha na mão, creme de barbear sobre a pia. A água corria pela torneira, monótona e hipnotizante.
Ergueu o braço, com o rosto já lavado. Pôs a lâmina na garganta. Parou e observou que no espelho, ao contrário dele, seu Outro era canhoto. Sorriu e parou o movimento de corte antes que ele começasse. Seu Outro o seguiu.
O que havia de errado, então? Poderiam mesmo as coisas do lado de cá serem tão inversas assim? A dor pode ser o seu oposto e tornar-se prazer? Sofrimento dilacerante pode ser satisfação calada? O espelho é uma porta para o mundo do inverso e, talvez, lá as coisas sejam melhores. Pode o choro ser riso, do outro lado do espelho?
Foi quando fez um pequeno corte sob o olho direito, e uma lágrima de sangue desceu pelo rosto. Embora sentisse dor, teve a impressão de que seu Outro estava sorrindo com o canto esquerdo da boca.