Outro do lado contrário

Ficou parado diante do espelho. Navalha na mão, creme de barbear sobre a pia. A água corria pela torneira, monótona e hipnotizante.
Ergueu o braço, com o rosto já lavado. Pôs a lâmina na garganta. Parou e observou que no espelho, ao contrário dele, seu Outro era canhoto. Sorriu e parou o movimento de corte antes que ele começasse. Seu Outro o seguiu.
O que havia de errado, então? Poderiam mesmo as coisas do lado de cá serem tão inversas assim? A dor pode ser o seu oposto e tornar-se prazer? Sofrimento dilacerante pode ser satisfação calada? O espelho é uma porta para o mundo do inverso e, talvez, lá as coisas sejam melhores. Pode o choro ser riso, do outro lado do espelho?
Foi quando fez um pequeno corte sob o olho direito, e uma lágrima de sangue desceu pelo rosto. Embora sentisse dor, teve a impressão de que seu Outro estava sorrindo com o canto esquerdo da boca.

Um comentário:

Lu disse...

Adorei esse início, gosto dessa narrativa!
A gota de sangue para contemplar o lado dark e a água hipnotizante para embelezar e estranhar o bom e velho cotidiano.
Sabe que esse seu personagem, quando se questiona diante do espelho, me traz um incômodo danado? Ai, mexeu nas minhas bagunças aqui... Também tô precisando de uma conversa com esse tal Outro aí...

Beijos, querido, fico feliz da vida de te ver escrevendo de novo!